O papel do conselheiro independente no aperfeiçoamento da governança corporativa
Rute Brandão | RS Adv.
em 3 de dezembro de 2021
Em 27/08/2021 foi publicada a Lei do Ambiente de Negócios (Lei 14.195/2021), a qual se propôs – como o nome já indica – a otimizar o ambiente de negócios no país, trazendo mais segurança jurídica aos investidores e desburocratização em procedimentos relacionados às empresas. Essa medida foi adotada com a finalidade de melhorar indicadores de negócios analisados no relatório Doing Business do Banco Mundial1 e, assim, melhorar a posição do país na classificação geral perante esta instituição.
Uma das mudanças trazidas pela referida lei foi a inclusão do § 2º ao art. 140 da lei das Sociedades Anônimas (S.A), que trouxe a obrigatoriedade de participação de conselheiros independentes nos Conselhos de Administração de companhias abertas.
É bem verdade que, antes da publicação da nova disposição legal, a exigência já era endereçada às empresas dos segmentos de Governança Corporativa Novo Mercado e Nível 2, prevista nos respectivos Regulamentos da B3. Agora, porém, com a alteração da Lei de SA, as companhias de todos os segmentos de listagem da B3 estão obrigadas a cumprir a exigência2.
A mudança legislativa teve o intuito de aperfeiçoar o grau de maturidade em governança corporativa dessas companhias, ditando tendência de boas práticas para as demais empresas, a exemplo de empresas de capital fechado, empresas familiares ou PMEs em expansão.
1. A função de conselheiro independente
No desenvolvimento da atividade empresarial ao longo da história, verificou-se um fenômeno de dissociação da função de proprietário da participação societária (investidor) da função de gestão do negócio. Isso levou ao surgimento de interesses conflitantes; de um lado, investidores que visam a um máximo retorno do capital investido que se mantenha por longo tempo e, de outro lado, por um gestor que visa ao resultado de curto prazo.
A governança corporativa, então, surgiu para resolver esses conflitos divergentes com a finalidade de promover a geração de valor das organizações de modo perene. Assim, despontam dois importantes órgãos de governança corporativa: o conselho de administração – órgão colegiado composto por representantes dos acionistas (proprietários) – e a diretoria executiva, responsável pela administração do negócio.
Para garantir a conciliação entre essas partes interessadas, no melhor interesse da organização, ao conselho de administração são conferidos poderes para deliberar sobre orientações do negócio e para definir as expectativas de resultado, as quais serão endereçadas à diretoria executiva para implementá-las. Ao conselho também são deferidos poderes de sindicância da diretoria executiva para averiguar se esta está executando as diretrizes que lhe foram fornecidas.
Por outro lado, a diretoria executiva é investida de poder para fazer a gestão do negócio, desenvolvendo a estratégia e os planos de ações necessários para o alcance das expectativas de resultados pelo conselho.
Ambos os órgãos estão sujeitos a fiscalizações, por meio de Conselho fiscal, comitê de auditoria, auditorias internas ou independentes, a fim de se verificar o atendimento ou não de suas respectivas funções.
Acontece que, mesmo com a atribuição de funções distintas e complementares entre os órgãos corporativos e com a criação de mecanismos de fiscalização e controle interno, ainda há a possibilidade de haver conflitos de interesses. Dentre esses problemas podem se citar o monopólio das decisões do conselho administrativo por um grupo controlador ou mesmo a concentração numa só pessoa de poderes da presidência executiva e presidência do conselho.
Em ambos os casos os sócios minoritários podem se encontrar desprotegidos, pois não possuem representatividade junto ao conselho de administração ou, ainda que o tenham, podem ter os seus interesses desprestigiados.
Nesse contexto, surge a figura do conselheiro independente. Um profissional que não tem qualquer vínculo com a organização – ou pelo menos com as pessoas que compõem o conselho de administração ou a diretoria executiva – e que ocupa assento junto ao conselho de administração. Essa pessoa deve contar com conhecimento técnico sobre o segmento da organização e com uma perspectiva de mercado vinda “de fora”, para assim agregar mais valor ao negócio.
Não há, porém, norma legal no ordenamento brasileiro que traga a definição de “conselheiro independente” ou do que seja “independência” de um conselheiro.
Há apenas a instrução CVM n. 480 que, em seu Anexo 29-A, traz a recomendação de que uma sociedade aberta deve possuir conselheiros independentes em “número adequado”. O normativo não indica os critérios para verificação desta regra e delega ao Código Brasileiro de Governança Corporativa – Companhias Abertas, de confecção coordenada pelo IBGC, a função de definir as condições de independência de conselheiros e sua forma de avaliação.
Na tentativa de suprir a omissão regulamentar, o Regulamento de Listagem do Novo Mercado determina um mínimo de 2 (dois) conselheiros independentes – ou 20% (vinte por cento) do board, o que for maior.
Por sua vez, o Código Brasileiro de Governança Corporativa: Companhias Abertas do IBGC – referenciado pela instrução CVM n. 480 – recomenda que os conselheiros independentes ocupem, no mínimo, de um terço de assentos do board, aumentando a exigência de governança.
1.1 A função do conselheiro independente segundo o IBGC
Segundo o Código Brasileiro de Governança Corporativa, conselheiro independente é definido como:
“conselheiros externos que não possuem relações familiares, de negócio, ou de qualquer outro tipo com sócios com participação relevante, grupos controladores, executivos, prestadores de serviços ou entidades sem fins lucrativos que influenciem ou possam influenciar, de forma significativa, seus julgamentos, opiniões, decisões ou comprometer suas ações no melhor interesse da organização.
O papel dos conselheiros independentes é especialmente importante em companhias com capital disperso, sem controle definido, em que o papel predominante da diretoria deve ser contrabalançado.”
Assim, os conselheiros independentes devem ser isentos na sua atuação, de modo que fatores subjetivos de ordem familiar, financeira ou profissional não gerem potenciais conflitos de interesse com a organização.
Partindo desse racional, o Regulamento de Listagem no Novo Mercado3 caracterizou o “Conselheiro Independente” pelos seguintes aspectos:
- I
não ter qualquer vínculo com a Companhia, exceto participação de capital; - II
não ser Acionista Controlador, cônjuge ou parente até segundo grau daquele, ou não ser ou não ter sido, nos últimos 3 (três) anos, vinculado a sociedade ou entidade relacionada ao Acionista Controlador (pessoas vinculadas a instituições públicas de ensino e/ou pesquisa estão excluídas desta restrição); - III
não ter sido, nos últimos 3 (três) anos, empregado ou diretor da Companhia, do Acionista Controlador ou de sociedade controlada pela Companhia; - IV
não ser fornecedor ou comprador, direto ou indireto, de serviços e/ou produtos da Companhia, em magnitude que implique perda de independência; - V
não ser funcionário ou administrador de sociedade ou entidade que esteja oferecendo ou demandando serviços e/ou produtos à Companhia, em magnitude que implique perda de independência; - VI
não ser cônjuge ou parente até segundo grau de algum administrador da Companhia; e - VII
não receber outra remuneração da Companhia além daquela relativa ao cargo de conselheiro (proventos em dinheiro oriundos de participação no capital estão excluídos desta restrição).
Semelhantemente, o IBGC lista algumas dessas condições para a caracterização da independência do conselheiro no Código Brasileiro de Governança Corporativa: Companhias Abertas4.
Para o exercício dessa função de conselheiro – independentes ou não -, o IBGC5 faz recomendações de que estes possuam tanto hard skills financeiras e gerenciais – como visão estratégica, conhecimentos sobre relatórios gerenciais, contábeis financeiros e não financeiros, conhecimentos sobre gerenciamento de riscos etc. Recomendam-se também soft skills, a exemplo de boa comunicação, capacidade de mediar conflitos (ser diplomático) e proatividade.
No que diz respeito ao conselheiro independente, recomenda-se que se realize um processo seletivo por meio do qual se verifique se o candidato atende às expectativas técnicas e comportamentais necessárias ao conselho6, bem assim se é aderente aos princípios e valores da organização, à estratégia do negócio e ao estágio de maturidade da companhia.
Por fim, deve ser feita a avaliação periódica de desempenho do conselheiro independente para garantir que este se mantém alinhado aos objetivos corporativos e às expectativas da organização7.
1.2 O conselheiro independente como mediador de conflitos de interesses
A imparcialidade do conselheiro independente também pode agregar à organização pela mediação de conflitos de interesse (conflitos de agência) entre sócios majoritários e minoritário ou mesmo entre sócios não gestores e gestor, quando o presidente do conselho é também o diretor executivo presidente8.
Nesses casos é salutar que o conselheiro independente tenha protagonismo nas discussões e auxilie as partes na composição de um resultado que priorize a melhor decisão para a organização.
Dito isso, percebe-se a contribuição que esta figura pode trazer para empresas de capital fechado e empresas familiares9, nas quais há também conflitos de interesses dos mais variados. Além de mero mediador, nessas empresas o conselheiro independente pode contribuir com sua expertise e sua visão externa de mercado às discussões estratégicas do negócio, agregando-lhe ainda mais valor.
2. O §2o do art. 140 da Lei SA e os seus impactos
Visando a uma maior maturidade na governança corporativa das companhias brasileiras, foi inserido o §2o ao art. 140 da Lei de SA, tornando obrigatória a figura do conselheiro independente no board de capital aberto.
Transcreve-se a sua redação: “Na composição do conselho de administração das companhias abertas, é obrigatória a participação de conselheiros independentes, nos termos e nos prazos definidos pela Comissão de Valores Mobiliários.”
O novo dispositivo faz clara remição a normativo da Comissão de Valores Mobiliários, para que sejam estabelecidos termos e prazos para aplicação da nova regra. Ocorre que até o presente momento não há regramento específico da CVM que regulamente o dispositivo, ou seja, que discipline o quantitativo mínimo de conselheiros independentes ou prazo para adequação das companhias. Assim, até a publicação de norma específica da CVM, deve ser aplicada a instrução CVM n. 480.
Como não houve previsão expressa da vigência da nova regra, esta tem aplicação imediata. Acontece que as providências de ajuste dos conselhos de administração exigem procedimentos formais mínimos essenciais os quais demandam um tempo razoável e não podem ser implementados num só dia.
Desse modo, a ausência de período para adequação das companhias brasileiras abertas pode trazer impactos para aquelas dos segmentos Bovespa Mais, Bovespa Mais Nível 2 e Nível 1 da B3 que ainda não possuem o número mínimo de conselheiros independentes em seus boards.
3. O conselheiro independente líder (lead)
Face à importância da figura do conselheiro independente na composição do board, nos EUA surgiu o conselheiro independente líder que, embora não decorra de previsão legal neste país, tem ganhado cada vez mais força no mercado norte-americano, principalmente em casos em que o presidente do conselho de administração (Chairman) é também o presidente executivo (CEO).
Esse conselheiro funciona como representante dos conselheiros independentes e intermedeia o contato entre o conselho de administração e os investidores externos.
Em casos em que há clara discordância entre os presidentes do conselho de administração e da diretoria executiva, exerce também o conselheiro independente importante papel de intermediação destes órgãos, participando na elaboração de pautas de reunião e conduzindo a discussão sobre questões mais sensíveis, as quais podem dividir os conselheiros ou gerar conflitos entre estes e os gestores.
Já em casos nos quais a presidência do conselho administrativo e a diretoria sejam cumuladas por uma mesma pessoa, ou sejam ocupadas por pessoas relacionadas, o conselheiro independente deve ter protagonismo na mitigação (ou até enfrentamento) do potencial conflito de interesses10 e 11
Considerando que no ambiente empresarial brasileiro há tendência a uma maior concentração de poder em grupos acionários, um conselheiro independente líder pode contribuir ao aperfeiçoamento do nível de governança corporativa nas companhias nacionais e contribuir significativamente para a independência do conselho de administração.
Por aqui, já se verifica a inserção desta figura nos boards de algumas companhias, como é o caso da Vale S.A., do Banco Santander S.A. e da Granbio Investimentos S.A; os quais instituíram o Lead Independent Director (LID).
4. Considerações finais
Vê-se então que o conselheiro independente é um importante agente de promoção de boas práticas corporativas, ganhando progressivamente papel de destaque em organizações mais estruturadas.
Embora a recente alteração legislativa trazida pela Lei do Ambiente de Negócios tenha sido voltada para empresas que atuam no mercado de capitais, não há dúvidas de que este segmento representa o mais alto padrão de maturidade corporativa e que é fonte de inspiração e influência para o mercado como um todo, inclusive para empresas sem capital aberto.
Notas de Referência
[1] https://portugues.doingbusiness.org/pt/methodology/protecting-minority-investors
[2] https://www.b3.com.br/pt_br/produtos-e-servicos/solucoes-para-emissores/segmentos-de-listagem/novo-mercado/
[3]https://www.b3.com.br/data/files/81/15/35/22/3762F510ACF0E0F5790D8AA8/regulamento-do-novo-mercado-vigente-apos-06022006.pdf
[4] Código Brasileiro de Governança Corporativa: Companhias Abertas / Grupo de Trabalho Interagentes; coordenação Instituto Brasileiro, de Governança Corporativa. São Paulo, SP: IBGC, 2016.
[5] Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. 5ª Ed. São Paulo, SP: IBGC, 2015. p. 43.
[6] O serviço de processo seletivo pode, inclusive, ser terceirizado se assim desejar a organização.
[7] A mesma sistemática de avaliação periódica deve ser adotada para os conselheiros administrativos.
[8] Em caso de companhias abertas, não pode haver a cumulação das funções de presidente do conselho de administração e presidente da diretoria executiva por força Lei n. 6404, art. 138, §3o, incluído pela Lei nº 14.195, de 2021.
[9] Considera-se empresa familiar aquela que é controlada por uma família ou grupo de famílias.
[10] Esta é a recomendação do IBGC constante no Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. 5ª Ed. São Paulo, SP: IBGC, 2015. p. 46).
[11] No caso das companhias de capital aberto brasileiras, a mesma Lei do Ambiente de Negócios (Lei 14.195/2021) introduziu ao art. 138 da Lei de S.A. o § 3º, proibindo expressamente a cumulação de funções de presidência do conselho e presidência executiva. Entretanto, isso não reduz a contribuição que um conselheiro independente líder poderia ter nas referidas organizações.