Retenção de mercadorias para o desembaraço aduaneiro: o novo posicionamento do STF
Danilo Teixeira | RS Adv.
em 25 de setembro de 2021
Neste artigo, você entenderá um pouco mais sobre uma recente decisão do STF que vem assombrando as empresas importadoras e exportadoras: a tese firmada no tema de repercussão geral nº 1.042.
Segundo esse novo entendimento, é possível que a Receita Federal retenha a mercadoria em caso de não pagamento de pendências tributárias, como multas por subfaturamento.
A nova decisão do Supremo Tribunal Federal contraria diretamente o entendimento até então vigente, embasado na Súmula nº 323 do mesmo tribunal, a qual afirma ser abusiva a retenção de bens para pagamento de tributos.
Mesmo tendo afetado consideravelmente o mercado do comércio exterior, é importante que as empresas saibam que ainda existem meios jurídicos de liberar as suas mercadorias sem o pagamento de tributos muitas vezes arbitrários e ilegais.
Explicaremos a seguir os fundamentos utilizados pelo STF para firmar o seu novo entendimento, as diferenças entre o tema 1.042 e a Súmula nº 323 e as alternativas que as empresas importadoras possuem para liberar suas mercadorias e se defender de cobranças abusivas do Fisco Federal.
- Novo entendimento do STF sobre a retenção de mercadorias para o pagamento de tributos.
- Súmula nº 323 x tema 1042: entenda as diferenças.
- Meios administrativos e judiciais para conseguir a liberação das mercadorias.
3.1 – Impugnações administrativas com garantia.
3.2 – Demandas judiciais cautelares.
1. Novo entendimento do STF sobre a retenção de mercadorias para o pagamento de tributos.
Recentemente, ganhou o debate público uma alteração no entendimento majoritário da jurisprudência, acerca da possibilidade de a Receita Federal reter as mercadorias ao longo do despacho aduaneiro, para exigir o pagamento de tributos.
De fato, até então, os tribunais federais brasileiros entendiam que não era possível que o fiscal aduaneiro retivesse as mercadorias importadas para o pagamento de tributos vinculados ao processo de importação, como o Imposto de Importação, o ICMS – Importação e eventuais multas por descumprimento ou erro em obrigações acessórias.
Tal conduta do fisco federal era entendida como “sanção política”, o que é vedado pela Constituição Federal e pelo ordenamento jurídico pátrio, conforme S. 323 do STF, como se percebe dos julgados a seguir:
Tribunal | Julgado |
TRF – 5 | 0820247-10.2018.4.05.8100 |
TRF – 4 | 5050037-07.2018.4.04.7100 |
TRF – 3 | 5004077-25.2017.4.03.6119 |
TRF – 1 | 0013022-19.2007.4.01.0000 |
Além disso, os tribunais entendiam que bastaria ao Fisco Federal lavrar o competente auto de infração e se utilizar dos meios usuais de cobrança para reaver os tributos eventualmente não pagos pelos importadores, como a execução fiscal.
No entanto, é importante mencionar que esse entendimento não era pacífico, não sendo aplicado, principalmente, no Tribunal Federal da 2ª Região, responsável pelas lides oriundas dos estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, nos quais, historicamente, ocorre um grande volume de importações.
Ademais, merece destaque que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça já haviam adotado posição contrária aos importadores no passado, entendendo que seria possível a retenção de mercadorias para o pagamento de tributos, no curso do desembaraço aduaneiro (STF, AGRAG 186.759, nov/1997; STJ, REsp 500.286, REsp 68.247 e REsp 180.131).
O STF, então, elegeu essa matéria para ser objeto de um julgamento vinculante – obrigatório para todas as instâncias do Judiciário e da administração pública -, reconhecendo a repercussão geral do tema, sendo este registrado como o tema de nº 1.042 e afetado como leading case o Recurso Extraordinário nº 1090591/SC.
No dia 16/09/2020, a questão finalmente foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal, sendo firmada a seguinte tese: “É constitucional vincular o despacho aduaneiro ao recolhimento de diferença tributária apurada mediante arbitramento da autoridade fiscal”.
Analisando mais detidamente o voto do Ministro Marco Aurélio, acolhido pela unanimidade dos demais ministros, vê-se que foi dada especial relevância ao disposto no art. 571, §1º, I, do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009), que tem a seguinte redação:
Art. 571. Desembaraço aduaneiro na importação é o ato pelo qual é registrada a conclusão da conferência aduaneira (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 51, caput, com a redação dada pelo Decreto-Lei no 2.472, de 1988, art. 2o).
- 1º Não será desembaraçada a mercadoria:
I – cuja exigência de crédito tributário no curso da conferência aduaneira esteja pendente de atendimento, salvo nas hipóteses autorizadas pelo Ministro de Estado da Fazenda, mediante a prestação de garantia (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 51, § 1º, com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 2.472, de 1988, art. 2º; e Decreto-Lei nº 1.455, de 1976, art. 39);
O Ministro destacou que, segundo o dispositivo supracitado, o pagamento de tributo e de multas constitui elemento essencial ao desembaraço aduaneiro, não sendo caso de coação para pagamento de obrigações fiscais, mas de cumprimento do procedimento legal de importação.
É essencial ter em mente que o caso em tela se tratava, de fato, de uma pendência fiscal não adimplida pela empresa importadora, nem mesmo impugnada administrativamente.
Isto é, ao longo do desembaraço aduaneiro, o Fisco Federal realizou exigências e a empresa, notificada, não apresentou atendeu às exigências fazendárias, o que impediu o prosseguimento da conferência aduaneira.
Tanto é assim que, opostos embargos de declaração pelos contribuintes, o STF fez questão de destacar que o caso não se tratava de exigência ou auto de infração impugnado administrativamente, não sendo possível apreciar a matéria em sede de embargos de declaração.
Além disso, o STF alegou que a fixação de balizas procedimentais para a atuação da Fazenda Nacional não é matéria de discussão constitucional, mas meramente legal, de forma que não caberia ao tribunal se manifestar sobre o tema.
Nestes termos, a decisão se tornou definitiva e, por ter sido firmada em sede de repercussão geral, é de aplicação obrigatória pelas demais instâncias do Judiciário e da administração pública.
2. Súmula nº 323 x tema 1042: entenda as diferenças.
Um dos argumentos mais reiterados pelos contribuintes ao longo do processo que culminou no Recurso Extraordinário nº 1090591/SC, leading case do tema de repercussão geral nº 1.042, foi que se aplicaria ao tema em debate a Súmula nº 323 do STF, que afirma o seguinte: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”.
Contudo, a Fazenda Nacional realizou distinção entre o contexto fático e jurídico que conduziu à tese firmada no tema 1.042 e na S. 323, explicando as razões pelas quais ela não se aplicaria ao caso em questão.
Por entendermos que isso ainda é um ponto que pode causar confusão nas importadoras, exportadoras e profissionais do comércio exterior, passamos a destacar os pontos que foram levados em consideração pelo tribunal para diferenciar as situações:
Descrição | Tema nº 1042 | Súmula nº 323 |
Retenção ou apreensão | A discussão se tratava de mera retenção, e não de apreensão – instituto muito mais gravoso, aplicado para os bens sujeitos à pena de perdimento | A discussão girava em torno de um normativo, que autorizava o ente fiscalizador a apreender mercadorias de comerciantes em débito tributário, ainda que este não tivesse decorrido de operações realizadas com o bem apreendido |
Coação para pagamento de tributo | O pagamento do tributo inerente à nacionalização do bem importado faz parte do despacho aduaneiro, de forma que não há coação, mas mero cumprimento do procedimento previsto em normativos | Os bens apreendidos dos contribuintes não tinham relação com o fato gerador do tributo em aberto, o que se constitui como coação e sanção política, e não cumprimento de procedimentos legais de cobrança |
Compreendida a distinção entre os precedentes, o contribuinte deve ficar atento, a fim de evitar que a Fazenda extrapole os limites do tema nº 1.042, incorrendo nas condutas vedadas pela S. nº 323 do STF, o que gera o direito de o importador ter suas mercadorias liberadas.
Do mesmo modo, devem ser entendidos os contornos do tema nº 1.042, a fim de se evitar, ao máximo, incorrer no mesmo contexto fático que ocasionou a sua criação.
3. – Meios administrativos e judiciais para conseguir a liberação das mercadorias.
É importante destacar que nem tudo está perdido, e ainda há meios de se defender de exigências irrazoáveis da Receita Federal e conseguir a liberação das mercadorias importadas a tempo de salvar seu fluxo de caixa, atender ao contrato com seu fornecedor, ou implantar aquele projeto novo na empresa.
A seguir, destacaremos algumas alternativas possíveis aos empresários e empresárias, para serem estudadas caso tenham as suas mercadorias retidas indevidamente pelo Fisco, ao longo do despacho aduaneiro.
3.1 – Impugnações administrativas com garantia.
O Regulamento Aduaneiro, em seu art. 571, §1º, possibilita que a mercadoria seja desembaraçada, mesmo enquanto pendente de atendimento exigência tributária, nos casos em que o contribuinte presta garantia do valor exigido.
Como sabido, uma vez autuado o indivíduo pela administração fiscal, o contribuinte poderá, em suma, adotar três medidas: acatar e pagar o valor cobrado, ou impugnar a autuação, com ou sem a prestação de caução.
Impugnada cobrança realizada pelo Fisco, resta instaurado o processo administrativo e o crédito tributário está automaticamente suspenso, isto é, não pode ser exigido pela Fazenda, nem mesmo por meio do processo de execução fiscal.
É possível que o contribuinte, além de impugnar o auto de infração, apresente garantia (depósito) no valor exigido pelo Fisco, o que tem como efeito a interrupção da contagem de juros e correção monetária sobre a quantia em aberto.
Ora, uma vez suspenso e garantido o crédito tributário, não faria sentido que o contribuinte continuasse com as suas mercadorias retidas pela Receita Federal.
Assim, mesmo que venha a ser mantida a autuação, ao fim do processo administrativo, o Fisco poderá, simplesmente, converter o valor da garantia em pagamento, extinguindo o crédito tributário e satisfazendo sua ânsia arrecadatória.
As únicas hipóteses que mesmo a prestação de garantia não permitirá a liberação das mercadorias estão descritas na Instrução Normativa nº 1.986 de 2020 da Receita Federal, quais sejam:
- Mercadoria cuja importação seja proibida – drogas ilícitas, por exemplo;
- Mercadoria cuja licença de importação esteja vedada ou suspensa;
- Mercadoria que não tenha sido objeto de declaração de importação;
- Mercadoria que já tenha sido objeto de Termo de Apreensão.
Assim, o contribuinte deve estar atento a essa possibilidade de liberação de suas mercadorias, por contar com amplo lastro legal.
Além disso, prestar garantia, como visto, não impede que o contribuinte continue discutindo a legalidade da exigência fazendária, nem que, eventualmente, a disputa seja levada ao Judiciário, inclusive aproveitando a garantia já prestada.
3.2 – Demandas judiciais cautelares.
Ocorre que, por vezes, os contribuintes que trabalham com a importação e exportação de mercadorias não possuem valores em caixa suficientes para quitar obrigações trabalhistas, contratuais e, ainda assim, prestar uma garantia suficiente para liberar seus bens perante a aduana.
Como vimos, a mera apresentação de Manifestação de Inconformidade das exigências do Fisco e, em última instância, a impugnação ao auto de infração lavrado pela Receita tem o condão de ocasionar a suspensão do crédito tributário.
Além disso, o art. 571, §1º, I, é claro ao afirmar que a mercadoria não será desembaraçada caso exista exigência tributária pendente de atendimento.
Assim, a interpretação correta dos normativos já mencionados é que, uma vez suspenso o crédito tributário, em função da apresentação de oposições às exigências do Fisco, é evidente que os créditos tributários lançados ao longo do desembaraço aduaneiro deixam de estar pendentes de atendimento.
Ora, ou algo está com exigência suspensa, ou está pendente de atendimento, sendo certo que, a partir da manifestação de inconformidade ou da impugnação à autuação, não é mais aplicável o disposto no art. 571, §1º, I, devendo ser liberada a mercadoria do contribuinte.
Tanto é assim que alguns tribunais pátrios, notadamente o Tribunal Federal da 5ª Região, já estão determinando a conclusão do desembaraço aduaneiro e a liberação das mercadorias, nos casos em que o contribuinte apresenta algum tipo de oposição à exigência da Receita Federal[1].
É essencial atentar-se para o fato de que a demanda judicial só terá alguma eficácia se, administrativamente, o contribuinte tenha apresentado oposições às exigências lançadas no SISCOMEX, seja por meio de manifestação de inconformidade, seja por impugnações ao auto de infração.
Esse conteúdo foi útil para você e a sua empresa?
Deixe nos comentários as suas impressões e dúvidas.
[1] Agravo de Instrumento nº 0802545-96.2021.4.05.0000 – 1ª Turma do TRF-5 – Decisão monocrática do Desembargador Alexandre Luna Freire.